A "polaca"
Francisco Campos |
Constituição do Estado Novo traduzia idéias antiliberais de um único jurista: Francisco Campos
Paulo Sérgio da Silva
23/4/2008
A instauração do Estado Novo, em 1937, representou uma
profunda transformação para as instituições nacionais e as relações de
poder que se mantinham praticamente inalteradas desde a proclamação da
República, em 1889. O regime de exceção capitaneado por Getulio Vargas
(1882-1954) se prolongaria por oito anos. Ao longo desse período, sob o
argumento das armas e da propaganda, a sociedade brasileira foi varrida
por um vendaval de profundas mudanças. Se a idéia era conciliar uma
aparência de democracia com ações políticas que evidentemente a
contrariavam, a solução jurídica para tornar viável o projeto de Getulio
era o estabelecimento de preceitos legais que sustentassem
conceitualmente essas contradições. Um novo texto constitucional, feito
sob medida para esses novos tempos, foi outorgado à nação.
Ao contrário das anteriores (a de 1891 e a de 1934), a Carta de 1937
não seguiu a metodologia republicana clássica – ou seja, um anteprojeto
elaborado por alguma comissão e posteriormente aprovado pelo Congresso.
Foi obra individual do jurista Francisco Campos, o qual, por sua
façanha, receberia o apelido de “Chico Ciência”.
Francisco Luís da Silva Campos nasceu em 1891 em Dores do Indaiá,
Minas Gerais. Graduou-se em Direito pela Faculdade Livre de Direito de
Belo Horizonte (1914) e entrou para a vida política em 1919, quando foi
eleito deputado estadual pelo Partido Republicano Mineiro (PRM). A
partir daí, trilhou uma carreira ascendente, tendo ocupado cargos
importantes no governo de Minas. Em 1930, participou das articulações
que levaram ao movimento armado que conduziu Getulio Vargas ao poder.
Depois de chefiar o recém-criado Ministério da Educação e Saúde, foi
nomeado por Getulio consultor geral da República e, mais tarde,
secretário de Educação do Distrito Federal.
Conhecido partidário de convicções antiliberais, Francisco Campos
tornou-se um dos elementos centrais nos preparativos da implantação do
Estado Novo. Às vésperas do golpe de 10 de novembro de 1937, Vargas fez
dele seu ministro da Justiça, encarregando-o de elaborar uma nova
Constituição. O jurista entendia que a instabilidade social se
instaurara no país. A revolta comunista de 1935 reforçava seu ponto de
vista. Para ele, o liberalismo democrático, centrado na crença da
liberdade de expressão e de pensamento, entrara em franca decadência,
como evidencia a coletânea de textos de sua autoria publicada na obra O
Estado Nacional (1940) e que expressa bem tal convicção.
Segundo ele, a Carta de 1937 viria para atender “às legítimas
aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente
perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente
agravação dos dissídios partidários” que colocavam “a Nação sob a
funesta iminência da guerra civil”. O “estado de apreensão criado no
País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e
mais profunda” estava a exigir “remédios, de caráter radical e
permanente”.
Para Francisco Campos, o Estado liberal, fazendo crer ser um regime
político democrático, acabava resultando efetivamente em ditaduras ou
democracias deformadas. Com o discurso retórico de repulsa a regimes
fortes, possibilitava a demagogia, a luta de partidos e a luta de
classes. Assim, ficava restrito ao triste papel de atender aos
interesses de uma classe, de um partido ou de um reduzido grupo de
indivíduos que exploravam o poder em prejuízo da coletividade.
Pela ótica da doutrina liberal, conforme entendia o jurista, o fim
último do Estado eram a proteção e a garantia das liberdades
individuais, ou seja, a nação subordinava-se ao bem-estar dos
indivíduos, que a utilizavam como meio de garantia e de favorecimento
pessoal. Neste sistema, os valores nacionais, os ideais materiais e
morais da sociedade não são contemplados. Superando aquilo que Francisco
Campos considerava um retrocesso, a nova Constituição estipulava, ao
lado dos direitos individuais, o reconhecimento aos direitos da nação e
do povo.
Ainda na visão de Campos, o rádio, a imprensa e a propaganda em geral
seriam capazes de levar a opinião pública a um “estado de delírio” e de
“alucinação coletiva”, facilitando a adesão da população ao ideário
subversivo, notadamente às idéias socialistas. Um antídoto contra esse
perigoso processo, na sua opinião, era o cultivo do “mito da
personalidade”: a política de massas que se inaugurava incluía o clamor
por um “César” capaz de conduzi-las.
A idéia não era uma exclusividade brasileira. Não por acaso, a
Constituição de Campos passaria a ser chamada pelos seus críticos de
“polaca”, numa referência à outorgada pelo marechal de Jozsef Pilsudski
(1867-1935), líder do golpe militar que o levou ao poder na Polônia em
1921. O apoio popular, em função da simpatia pessoal do ocupante do
poder, tornara-se, em muitos países, a principal força motriz da unidade
política.
O jurista considerava que a população se tornara incapaz de fazer
racionalmente suas escolhas políticas. Convertera-se em mera massa de
manobra, ao sabor do contágio das emoções. Entendia que a centralização
autoritária do poder era a decisão mais acertada, conforme fica patente
no artigo 73 da sua Constituição: “O Presidente da República, autoridade
suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de
grau superior, dirige a política interna e externa, promove ou orienta a
política legislativa de interesse nacional, e superintende a
administração do País.”
Francisco Campos via no condutor do golpe de 1937 um astuto e
dedicado chefe de Estado, identificando-o como fundador de um novo
regime e guia da nacionalidade. Era o homem providencial, o ungido, que,
impondo sua vontade dura ao caos político nacional – segundo ele
provocado pelas lutas políticas entre a esquerda, representada pela
Aliança Nacional Libertadora, e a direita, pela Aliança Integralista
Brasileira –, levaria o Brasil à grandeza, à riqueza e à paz social.
Fiel aos ares das transformações por que passava o mundo, a nova
Carta estaria voltada para a realidade política brasileira e global.
Pretensas garantias ou conquistas, como “o sufrágio universal, a
representação direta, o voto secreto e proporcional, a duração rápida do
mandato presidencial, eram meios impróprios, senão funestos, aos ideais
democráticos”.
A essência da democracia residiria no reconhecimento de que o Estado é
constituído pela vontade dos destinatários de seu poder, ou seja, o
povo, conforme declarava e reconhecia a Constituição de 1937. Só que
isso não implicava, nas palavras de Francisco Campos, que “o sufrágio
universal fosse o sistema primordial das decisões políticas nem a de que
o Presidente da República devesse exercer o seu cargo por um curto
período de tempo, não podendo ser reeleito”. Previa-se a submissão do
Estado Novo a um plebiscito, a ser marcado por Getulio – o que, na
prática, nunca ocorreu. E que, em seqüência, as eleições para presidente
da República passariam a ser indiretas, nos seguintes termos:
“Art 82 – O Colégio Eleitoral do Presidente da República compõe-se:
a) de eleitores designados pelas Câmaras Municipais, elegendo
cada Estado um número de eleitores proporcional à sua população, não
podendo, entretanto, o máximo desse número exceder de vinte e cinco; b) de cinqüenta eleitores, designados pelo Conselho da Economia
Nacional, dentre empregadores e empregados em número igual;
c) de vinte e cinco eleitores designados pela Câmara dos
Deputados e de vinte e cinco designados pelo Conselho Federal, dentre
cidadãos de notória reputação.”
Abrindo espaço para as manifestações democráticas da população
brasileira, nela previu-se, em vez de eleições, o plebiscito – escolhido
como um dos meios mais adequados aos costumes, à tradição e às
particularidades do meio político e social do país. No entendimento do
jurista, a vontade do povo, preponderante sobre todos os valores
sociais, é que deveria determinar o momento e a pertinência ou não da
renovação e de prazos jurídicos artificialmente estabelecidos, entre
estes o mandato presidencial. A “verdadeira democracia” não se
definiria, dessa forma, em função de meios, processos, técnicas ou
mecanismos que “fabricam a opinião”.
“Se o ideal democrático não se realizar entre nós em medida maior que
no passado, o mal não estará no regime, mas nos homens incumbidos de
operá-lo. Estou certo, porém, de que, ainda admitindo defeitos de seu
funcionamento, as novas instituições democráticas do Brasil, mais do que
as anteriores, assegurarão garantias efetivas à realização do bem
público. E a democracia, como qualquer forma de governo, só pode ser
julgada pela soma de bem público que seja capaz de produzir. Não há
outro teste ou meio de verificação da bondade ou da conveniência de uma
forma de governo. Os frutos dirão da árvore”.
Confirma-se, assim, o pressuposto de que as regras jurídicas, como
todas as criações humanas, refletem a sua época e o pensamento de seus
autores. No caso da Carta de 1937, fica evidente a estreita relação
entre o texto constitucional e a orientação antiliberal de Francisco
Campos. Obra e criador formam aí um binômio complexo e indissociável, no
qual o entendimento de uma remete, necessariamente, à compreensão da
mentalidade do outro.
- Paulo Sérgio da Silva é pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa
e Segurança da Universidade Estadual Paulista (GEDES-UNESP) e autor de A
Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937: um retrato com luz e
sombra. (Ed. UNESP, 2008 – no prelo).
Saiba Mais - Bibliografia:
CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940.
BRASIL. Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937. Brasília: Senado Federal, 1999.
SCHWARTZMAN, Simon. (org.) Estado Novo: um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília: UnB, 1983.
Parabéns Professor!
ResponderExcluirO interessante na CF/37 é o que versa o Art. 1°. "O poder emana do Povo.."
E fico a perguntar: Que poder é esse, como exercê-lo estando em uma Ditadura agressiva e malvada? Estou mais tendencioso a acreditar se tratar de uma grande piada o constante daquele artigo primeiro, ou então seja igual aos Contratos - é obrigado a vir impresso para fazer de contas.. A coisa seria hilária se não fosse drástica.. Como o Povo é ludibriado pelos políticos!!! Mário Pinheiro e Silva - mariopesilva.23.0@gmail.com - Acadêmico de Direito.